Pobre Scott Campbell!


Muitas vezes a criatividade nasce de alguma dificuldade. Patentes revolucionárias foram criadas a partir de simples contratempos do cotidiano. Até mesmo a Arte nasceu inspirada pela imperfeição. E quanto mais imperfeito o meio do qual o artista faz uso para expressar-se, mais criativa deverá ser a forma dele contornar essa imperfeição. A escultura e as histórias em quadrinhos são duas artes bastante limitadas quando o objetivo é de transmitir a ilusão de movimento. Mas essas “limitações” abrem oportunidades para os artistas liberarem sua criatividade.

Na escultura, podemos entender Rodin, notório pelo realismo de suas obras, também como um “impressionista”, pois em alguns de seus trabalhos têm-se a impressão de que os corpos estão em movimento, exatamente porque o artista libertou-se da verossimilhança ao distorcer, por exemplo, toda a “musculatura” do corpo esculpido. Rodin criou “coreografias” impossíveis para possibilitar-nos testemunhar um “movimento estático”.

Também na arte da representação para o teatro é ensinado o não-natural como magnetismo para o olhar do público. Por mais vulgar e cotidiana que seja a cena proposta ao ator, é de competência deste que trabalhe seu corpo, seus movimentos, da maneira menos óbvia possível, de forma que possibilite um maior gasto de energia. A cena tem que parecer natural, e não óbvia, pois sendo óbvia ela não seria interessante.

Cena de "Till", montagem do Grupo Galpão

Aclamados como a “nona arte”, os quadrinhos não poderiam ter seus colaboradores cobrados a trabalhar de forma mais sistemática do trabalham os outros artistas. Afinal de contas, roteiristas e ilustradores devem ter conhecimento técnico compatível com os desafios a que se propõem a enfrentar. Mas devem ter liberdade criativa para isso, afinal de contas eles não são meramente técnicos, são artistas.

Disso tudo, o que fez Scott Campbell de errado com suas figuras femininas? Não acredito que a resposta seja algum desenho criado pelo quadrinista norte-americano, muito menos se for a polêmica ilustração onde uma “desconjuntada” Mary Jane anseia pelo retorno de seu amado herói. Afinal, qual é a questão? Seu traço é criticado por ser anatomicamente inverossímil ou por apresentar uma Mary Jane tão sexy, que beira o sobrenatural? A respeito dessa segunda crítica, discutiremos a partir deste link: AQUI.

Os quadrinhos utilizam linguagens e recursos de várias artes. Por que não utilizar as mesmas licenças poéticas? Lembremos do teatro e da escultura. Nenhuma obra de arte deve ser interpretada pelas partes. As minúcias apenas complementam o valor do todo. Um quadro deve ser compreendido como um todo e uma história em quadrinhos apresenta vários quadros. O famigerado “quadro” de Mary Jane é apenas um deles. É muito fácil sentir a aflição da Sra. Parker. Sem o exagero da distorção, como poderíamos flagrar esse drama a partir de um quadro sem legendas e nem balões para explicitá-lo?

Talvez seja mais ilustrativo diferenciar a genialidade de Campbell da falta de técnica e estilo viciado de um artista como Rob Liefield. Conhecendo o trabalho do primeiro dá para entender que a falta de verossimilhança é aplicada como recurso de linguagem. Esse ilustrador sabe representar com rigor as formas humanas. Já Liefield tem um estilo bastante “autoral” (aqui as aspas são para ironizar mesmo), onde personagens são apresentados em perspectivas bizarras, onde pés quase nunca tocam o chão.

Desde que interpretada de uma forma inteligente, desapaixonada, a crítica publicada pelo site Beeding Cool mostra-se construtiva. Rir do embaraço causado pela tentativa de representar com o próprio corpo uma cena criada para os quadrinhos pode gerar reflexões sobre como adaptar uma obra de HQ para o cinema: guiando-se pela verossimilhança ou assumindo o nonsense?

2 comentários:

    Excelente e erudito artigo, zâmio."Caricaturar ou não", taí um dilema pertinente quando se trata de HQ. Away!

    Opa. Muito obrigado por prestigiar nosso espaço, zâmio!

    A gente sempre discute aqui o "nonsense" versus "verossímil". Ultimamente a cobrança pela verossimilhança nas agaquês e produtos afins está bem carregada.

Disqus

comments powered by Disqus

BHQMais.com por Simplex